A Luta dos Índios Guarani Pelo Resgate da Agricultura Tradicional

Nas bordas de São Paulo, uma das maiores cidades do mundo, um importante trabalho nas duas Terras Indígenas paulistanas retoma cultivos ancestrais, como o milho, o amendoim, o feijão e a batata doce
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14.04.2021

Dia 19 de abril é comemorado o Dia do Índio. No momento atual, entretanto, deveria ser uma data de reflexão e conscientização. “Para o nosso povo, não há nada a festejar. Precisava ser um dia de manifestação política para chamar atenção das nossas questões”, questiona Jerá Poty Mirim, uma das lideranças Guarani da Terra Indígena Tenondé Porã. Verá Mirim Marcio Boggarim, um dos líderes da Terra Indígena Jaraguá, concorda: “é um dia que o povo branco lembra do indígena. Fora desta data, somos invisíveis. Mas a gente tá sempre aqui, a gente sempre existiu”.   

Esse pode parecer um tema distante de uma metrópole como São Paulo, mas não é. Se existe Mata Atlântica ainda na cidade, é por causa do povo da etnia Guarani, presente em duas Terras Indígenas, a Jaraguá, a noroeste da cidade paulista, e a Tenondé Porã, no extremo sul, em Parelheiros, que reúnem ao todo quinze aldeias. Aproximadamente 30% do município de São Paulo guarda características rurais. Porém, infelizmente, essas terras não são valorizadas como parte da identidade cultural e ambiental paulistana. E, principalmente, enfrentam até hoje a privação territorial e inúmeros desafios de todas as ordens desde o início da colonização do Brasil. 

Primeiro foram os portugueses, seguidos pelos bandeirantes, que juntamente com a urbanização da forma como foi feita nestas regiões de São Paulo, contribuíram para degradar uma área abundantemente biodiversa. No último século, essas terras também sofreram com a monocultura de café e eucalipto. Centenas de indígenas tiveram que deixar suas terras, e comunidades inteiras foram escravizadas. “É muita resistência. Depois de mais de 500 anos, mantemos a mesma língua, mesma crença e costumes”, assegura Jerá.

Desafios da demarcação das Terras Indígenas paulistanas

A Terra Indígena Tenondé Porã teve seus limites reconhecidos pela FUNAI – Fundação Nacional do Índio, em 2012, quando foram identificados 16.000 hectares como terras tradicionais do povo Guarani. Em 2016, elas foram declaradas para usufruto exclusivo da comunidade pelo Ministério da Justiça. Até então, era de posse das comunidades da zona sul somente duas pequenas terras de aproximadamente 26 hectares cada. Portanto, não havia espaço suficiente para a produção agrícola e o manejo ambiental. Hoje, a população total das nove aldeias é estimada em 1.500 pessoas. 

Por décadas, a Terra Indígena Jaraguá teve apenas uma aldeia, a Ytu. A falta de espaço, somada ao crescimento populacional, foram obstáculos para conseguirem manter suas tradições e modo de vida. Depois de anos de reivindicação, a demarcação nos parâmetros atuais foi feita em 2015, alocando 532 hectares para a comunidade.

Casa de aldeira guarani no Estado de São Paulo
Cultura Guarani-Mbyá / Fotos: Ormuzd Alves

Metade das terras sem poder plantar

Contudo, a questão de espaço ainda se mantém urgente. É que 46% das terras encontram-se em área de sobreposição com o Parque Estadual do Jaraguá.  Isso significa que, em quase metade de seu território, os Guarani não podem plantar ou construir casas. A FUNAI e Governo Federal não realizaram a desintrusão e garantiram a saída de não indígenas que ocupam a terra demarcada. As dificuldades para viver de maneira saudável e adequada, portanto, ainda são uma realidade nessas terras, que reúnem cerca de 600 pessoas em seis aldeias.

Sendo assim, mesmo após as demarcações, são constantes as tensões, retrocessos e ameaças às terras indígenas paulistanas. Um exemplo recente aconteceu em março de 2020, quando uma empresa tentou construir um conjunto habitacional a 100 metros da Terra Indígena Jaraguá, em uma área de ocupação tradicional Guarani, e derrubou centenas de árvores sagradas. 

E a Prefeitura de São Paulo chegou a conceder o alvará da obra. Mas os indígenas se manifestaram, alegando que não foram questionados. Afinal, aquilo ia contra a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que obriga a consulta aos povos originários sobre obras que causam impacto na comunidade. Felizmente, o empreendimento foi embargado.

A agricultura guarani

Mesmo com todos os obstáculos para conquistar finalmente a posse de suas terras, agora a luta indígena é pelo resgate de sua agricultura tradicional e soberania alimentar.  E isso só é possível se houver espaço para plantar. Com a assistência de alguns programas e parcerias, há avanços significativos que merecem ser celebrados. Às margens de uma das maiores cidades do mundo, eles estão retomando o cultivo de alimentos ancestrais, como o milho, o amendoim, o feijão e a batata doce. 

Os Guarani são célebres por sua agricultura. O nhandereko (modo de viver, em guarani) são práticas e saberes guardados como um tesouro, assim como suas sementes. Segundo os anciãos, os alimentos verdadeiros são variedades de cultivos que as divindades possuem em suas moradas celestes. Alimentar-se deles ajuda a manter os corpos mais saudáveis à semelhança divina.  

É através desses ensinamentos, protegidos e reproduzidos entre as gerações, que se encontra a potência da agricultura Guarani, tão resiliente quanto o seu povo. Os Guarani valorizam o policultivo e a troca de sementes com parentes, sejam próximos ou distantes. Continuamente expulsos de suas terras, pequenos grupos da etnia seguiam levando consigo suas sementes tradicionais em busca de novos refúgios.

As muitas variedades de cada um dos alimentos tradicionais, como o avaxi, o milho autêntico de diversas cores e tamanhos, como azul, vermelho, amarelo, branco, preto e mesclado, mostra como as divindades criaram o mundo, desdobrando uma espécie a partir da outra e povoando a terra de múltiplas variantes. Esse é o destino dos cultivos guarani: tornarem-se eternos pela renovação. “Esse milho colorido a gente sempre teve. Ninguém associa ao nosso povo, mas é Guarani”, orgulha-se Marcio.

Agricultura para subsistência

É importante pontuar que o povo indígena não busca a comercialização, mas valoriza a prática da agricultura tradicional para a própria subsistência. Faz parte da cultura também o mborayvu, ou generosidade, que é o próprio fundamento da vida comunitária. Por isso, além de compartilharem alimentos, dividem o espaço ao redor do fogo e trabalham em mutirões, produzindo sempre coletivamente. 

Antes de iniciar o plantio, os mais velhos realizam a cerimônia da bênção da roça, momento em que as crianças cumprem o papel de purificação das sementes. Para os Guarani, o alimento não foi gerado somente para alimentar o corpo, mas para nutrir o espírito. Por isso, ele é sagrado. O milho, por exemplo, passa por vários benzimentos desde o plantio, passando pelo momento da colheita e limpeza.

Mãos seguram vagens resultado de colheita em plantação guarani
Foto: Luiza Calagian (Acervo do Centro de Trabalho Indigenista)

Projeto Ligue os Pontos na Terra Indígena Tenondé Porã

O premiado projeto Ligue os Pontos, promovido pela Bloomberg Philanthropies e coordenado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, atua na zona rural da cidade e apoia produtores na adoção de práticas mais sustentáveis. Em 2019, com o início do programa na Terra Indígena Tenondé Porã, fizeram um levantamento que mapeou a produção agrícola em seis aldeias. O estudo, executado pelo Centro de Trabalho Indigenista – CTI, teve participação ativa dos Guarani. O projeto combina técnicas inovadoras e recebe assistências através de parceiros, com cursos, oficinas de formação e intercâmbios com outros programas.  

Desde que a comunidade teve seu território ampliado, as práticas agrícolas têm recebido foco total como forma de recuperar a segurança alimentar. Neste processo, participam indígenas de todas as idades e gêneros. Os mais velhos, ou xamoĩ, ensinam as histórias das plantas, seus mistérios e sentimentos.

Homens e mulheres Guarani trabalhando na plantação em aldeia no Estado de São Paulo
Foto: Pedro Biava (Acervo do Centro de Trabalho Indigenista)

Resgate da biodiversidade pelos Guarani

Após a Revolução Verde no pós-guerra (leia mais sobre ela aqui), o mundo perdeu amplamente sua biodiversidade e foram selecionadas pouquíssimas variedades de alimentos. Daí a importância desse trabalho. Entre os cultivos ancestrais e pré-coloniais guarani que estão sendo replantados, aparecem os milhos coloridos, a batata-doce, o amendoim preto, o feijão, a erva mate, o pinhão, a mandioca, o palmito juçara e diversas frutas como a melancia, o araçá, o jaracatiá, o araticum e a pitanga.

 “Mudou muito a nossa cultura alimentar, mas estamos trabalhando pelo resgate. Hoje temos 50 tipos de batata doce, nove tipos de milho, dez de mandioca, estamos multiplicando. Fomos participando de feira de troca de sementes, trocando com Guarani da Argentina e de outros estados, somando a sabedoria dos mais velhos com suporte técnico”, conta Jerá. Atualmente, no território, são encontradas mais de 200 espécies de alimentos, todas livres de qualquer transformação gênica. “Quero comer macarronada por opção, não por falta de escolha”, deseja a liderança indígena.

Programa Aldeias nas Terras Indígenas Jaraguá e Tendondé Porã

Outro programa que está promovendo mudanças e gerando frutos nas terras indígenas paulistanas é o Aldeias, que dedica-se a questões como nascentes poluídas, extinção de polinizadores e perda de biodiversidade. A iniciativa é da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo e implementada nas duas TIs junto às comunidades pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI) desde 2014. O programa é um exemplo por ser conduzido pelos próprios indígenas. O Aldeias oferece suporte financeiro e técnico e combina práticas tradicionais com técnicas contemporâneas da agroecologia e permacultura. Um dos focos é criar estruturas para que os Guarani tenham autonomia na implementação e reparos. 

No caso da TI Jaraguá, por ter sido uma fazenda de café, a predominância da planta em relação a outras espécies prejudicou o equilíbrio do bioma. Os animais estavam passando fome porque não havia variedade de frutas e as abelhas não estavam conseguindo produzir mel. Só em 2019, mais de 300 mudas de espécies como pitanga, cambuci, araucária e palmito-juçara foram plantadas. Dezenas de voluntários trabalharam em mutirões para reflorestar e diversificar a mata. Ainda foi feito um trabalho de recuperação de nascentes e também construído um viveiro de mudas para a preparação antes do plantio. 

Também foi instalado um meliponário com dezenas de colmeias de espécies diferentes de abelhas nativas indígenas da Mata Atlântica, como uruçu amarela, mandaçaia, mandaguari, mocinha branca, jataí, tubuna e mirim. O Aldeias comprou as caixas para a reprodução das espécies e forneceu infraestrutura para a criação e manutenção. “Não adianta pensar em reflorestar nem fortalecer o meio ambiente sem pensar nas abelhas nativas, porque elas que fazem a roda girar com a polinização. Através do dom que nosso Deus Nhanderu deu a elas, elas conseguem produzir a Mãe Terra”, explica Marcio. 

O mel produzido é usado principalmente para cerimônias guarani e produção de remédios naturais. A cera é utilizada para fabricar velas para os rituais de batismo. Uma enzima que dá perto do ninho funciona como uma cola para a produção de armas sagradas que se faziam antigamente, para proteção espiritual e física. Como alimento, o mel é bastante consumido com palmito. 

Pela proximidade e sobreposição com o Parque Estadual, a Terra Indígena também tem um potencial enorme para projetos de ecoturismo, que é exatamente o que os Guarani do Jaraguá esperam fazer no futuro. A ideia é que a comunidade guie visitantes para passeios com um tom ecológico para as pessoas conhecerem como vivem e cuidam da mata para derrubarem seus preconceitos sobre os povos indígenas.

Homem Guarani posa com rio ao fundo
Foto: Luiza Calagian (Acervo do Centro de Trabalho Indigenista)

O Cinturão Verde Guarani

Em 2016, as comunidades indígenas, através da Comissão Guarani Yvyrupa, começaram uma articulação para a criação em São Paulo do Projeto de Lei 181/16, conhecido como PL do Cinturão Verde Guarani. O PL quer estabelecer e garantir políticas públicas municipais para fortalecer o trabalho de preservação ambiental nessas terras, reconhecendo-as como um bem público da cidade. O projeto está sendo debatido na Câmara e depende de uma segunda votação e da sanção do prefeito Bruno Covas. 

Inclusive, vale ressaltar que a situação da etnia é extremamente delicada no país. Atualmente, nas regiões sul e sudeste do Brasil, espalhados por seis estados, aproximadamente 20 mil Guarani vivem em 153 terras indígenas. Apenas uma minoria dessas áreas foi devidamente demarcada pelo governo. 

Porém, embora insuficiente ainda para garantir a soberania alimentar como eles gostariam, estes movimentos devem ser comemorados. Os agricultores estão entusiasmados, afinal, fazia muito tempo que não plantavam. Também estão felizes por poderem ensinar seus filhos e netos como é que os Guarani viviam das plantas antigamente. Os jovens, por outro lado, estão muito engajados, o que significa uma perspectiva de futuro. Porque sem espaço, não há como essa cultura ancestral se perpetuar. 

Cominidade Guarani posam com espigas de milhos de sua colheita
Foto: Ormuzd Alves

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